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Sem paizão ou paizinho, apenas pai

Do site do Jornal Correio do Povo

Os tempos estão mudando e cada vez mais os pais querem assumir as responsabilidades e terem direito à participação efetiva na vida dos filhos

por Anália Köhler

13/08/2017

Distribuir charutos na porta do hospital, registrar a criança e voltar normalmente ao trabalho. Esse era o papel do “pai provedor” quando nascia um filho, há nem tanto tempo assim. Da água ao vinho, hoje “pai que é pai” quer mais é estar com olheiras e a cara amassada, provas de que viveu mais uma noite em claro compartilhando os cuidados com o bebê. Superpai? Paizão? “Sou pai e ponto. Sem adjetivos”, sintetiza Fabrício Escandiuzzi, 41 anos, pai adotivo de Luísa e editor do blog Diário do Papai, de Florianópolis.

Difícil crer em tamanhas mudanças culturais em espaço de tempo tão curto. É olhar para trás e ver que a sociedade não condenava os homens que buscavam outras parceiras durante o puerpério. Enquanto a mulher, sozinha, centralizava o foco de sua vida na criança, não restava tempo para cuidar de si, menos ainda para dar atenção ao marido. E hoje, não só são divididas as noites “não” dormidas como já se fala em licença-paternidade de 20 dias, pré-natal do parceiro e até em “Semana do Aleitamento Paterno”, como sugere o pediatra paulista Moises Chencinski, 60, criador do movimento Eu Apoio Leite Materno e do Consultório Amigos da Amamentação, em parceria com o médico Marcus Renato de Carvalho. “Aleitamento é oferecer o leite, amamentar é oferecer o seio. Por isso se fala em aleitamento materno, que até parece redundância, mas não é”, explica.

O jornalista, em seu blog, lembra de um comercial da década de 80 que fez muito sucesso na época, premiado com o troféu Imprensa, que incentivava os pais a serem mais presentes na vida de seus filhos. O slogan era: “Não basta ser pai, tem que participar”. Este “ter que participar”, da época, para Fabrício, soa como ser um “pai que ajuda... quando pode”, o que contraria as transformações culturais que vêm sendo percebidas na sociedade. Agora o pai não quer mais ocupar o papel de mero coadjuvante.

Três dias foi o tempo – ou prazo – que Fabrício Escandiuzzi teve para se preparar para a chegada da Luísa. Aos 41 anos, “acabei me tornando pai em tempo integral”. E sentencia: “pai é a minha função”. Assustado com uma adoção que não acreditava que ocorresse de forma tão rápida, “não tínhamos nada: nem cama, roupas, sequer uma meia para colocar naquele pezinho”, conta.

O casal adotou Luísa, na época com 22 dias. Do susto inicial nasceu o blog www.diariodopapai.com.br, onde Fabrício descreve cada momento, conquista, desafios e inseguranças. “Montei um blog pra contar isso. Acabou tendo repercussão interessante mesmo”.

E há pais que adotam e pais que são adotados. Aos 55 anos, o corretor Marco Fernandez conta que faz três anos do momento em que ele foi apadrinhado por um menino de 12 anos na Instituição Amigo de Lucas, em Porto Alegre. Hoje solteiro e morando com a mãe, Marco conta que o menino o chama de pai, sua mãe chama de avó, e que passam os finais de semana e as férias sempre juntos. “É muito gratificante poder dar opções de vida diferentes para uma criança com essa idade. Já estamos colhendo os frutos no nosso caminho. É uma bênção. Isso é verdadeiramente ser pai”, sintetiza.

“A prova de que eu estava registrando tudo: a Lavínia nasceu às 11h14min e a foto foi publicada no grupo às 11h14min44s”, conta o pai Leonardo Barcellos, publicitário, antecipando que a sua história junto a Tiele Dornelles, 25, “foi bem louca”. Ele conta que ela, com menos de 50% de chances de engravidar, fazia de vez em quando, despretensiosamente, algum exame de gravidez. “A gente não acreditava que um dia poderia ter um bebê”, diz ele, relembrando o susto. “Até hoje eu lembro da primeira vez que ouvi o coraçãozinho dela batendo. Aquele ‘puf, puf’ ecoa em mim até hoje”, conta. “Daquele barulhinho pra frente, minha vida de pai começou”. Leonardo fez o pré-natal em Sapucaia do Sul com Tiele. “Eu fazia as perguntas mais idiotas do mundo”, conta ele, se dizendo o fiscal da parceira. “Vamos lá, amor, come legumes, come frutas!”. O braço do Leonardo tem uma tatuagem com uma pergunta que ele se faz todos os dias: Como você está se sentindo hoje? E ele responde: “Me sinto família. Ser pai é um elo que se cria”.

“O começo foi assustador. Na primeira semana não dormi. Ficava acordado todo o tempo, só olhando pra ela”, conta o Jairo, que experimentou a paternidade aos 44 anos. Ele diz que ficou quatro dias sem dormir em nenhum momento. Com Catherine completando quase um mês de vida, só agora ele se permite começar a relaxar. “Durante a semana ela levanta. No final de semana é a minha vez”, conta o pai sobre o revezamento com a companheira nas noites de choro, lembrando que quer aprender tudo sobre como cuidar da filha. “Troco, dou o banho. Vestir ainda apanho um pouquinho”, assume. Quando Catherine chora, Jairo relata que a coloca sobre o peito e ela se acalma. “Daria pra fazer tudo sozinho se tivesse mais tempo”, conclui, encantado com o fato de todo dia ter novidade na relação com o bebê.

“O Nei faz tudo. Dá banho, faz dormir, dá a janta. Ela é apaixonada pelo pai”, conta a companheira Fernanda Queiroz. Nei Xavier Guatimosim, 31 anos, diz que a chegada da Ana Laura, hoje com quase dois anos, não foi planejada mas mesmo assim participou ativamente da gravidez e dos primeiros cuidados com o bebê. “Fiquei uma semana de licença paternidade para ajudar a Fernanda. Ser pai era meu sonho”, conta. Dos momentos com a filha, o que Nei mais curte são as primeiras horas da manhã. “Às 7 horas ela chega na nossa cama e fica chamando: ’acóida, papai’...” Fernanda lembra que os dois são muito ligados. “E brincar na pracinha é só com o papai”, emenda. Sobre a participação na rotina dos filhos, ele acha que ainda existem muitas barreiras culturais. “Quando saímos, não posso trocar as fraldas da Ana Laura porque os trocadores ficam nos banheiros femininos”, lamenta.

Fui avô antes de ser pai”, conta Arlei Ribeiro da Silva, 45 anos, pai de Ariely, hoje com dois meses de idade. “Desde muito cedo eu tinha como projeto de vida ser pai”, destaca, “mas com os anos passando, já nem contava mais com isso”. A companheira, Simone Borges, de 41, mãe de três filhos e avó de duas crianças de outro casamento, também não tinha planos para mais um filho. “Meu desejo estava arquivado, até que um dia, no trabalho, eu descia as escadas quando li no celular a mensagem de que ela estava grávida. Quase caí. Precisei ser amparado”, resume Arlei. Hoje, ele conta que apesar da rotina de trabalho, das 12h às 22h , chega em casa preparado para o revezamento com Simone. “Sempre que ela precisa de mim, levanto, embalo, troco fralda. Não me sinto cansado com isso”. E conclui: “Vejo amor nos olhinhos dela. Não tem o que pague no mundo saber que ela me conhece e sabe que eu estou ali”.

Pois tanto faz qual seja a idade ou a situação familiar de cada um: Jairo Júnior, 44 anos, pai de Catherine; ou Nei Xavier Guatimosin, 31, pai de Ana Laura; Leonardo Barcellos, 30, pai de Lavínia; Fabrício Escandiuzzi, 41, pai de Luísa; ou do Arlei Ribeiro da Silva, 45, pai de Ariely; ou ainda Marco, 55, apadrinhado há três anos por um menino de 15. Comum a todos foi perceber a mesma vontade de aprender, de ensinar e de se conectar com o seu filho.

Em busca de direitos

Eles estão reclamando seu direito à participação. Não querem mais ser o “paizão”. “A primeira coisa que precisamos entender hoje é que o pai não ajuda. Ele faz parte. Tirando a gestação, o parto e a amamentação, ele pode ser coparticipante de todo o processo”, explica Moises Chencinski. “Mas para isso, deve haver permissão e acolhimento”, complementa. Ainda mais em um momento do cotidiano em que o papel de “provedor” já não é mais exclusividade masculina, como era no século passado. “Acolher o pai no processo não é tarefa apenas da mulher, mas de toda a família. Os avós, por exemplo, podem desempenhar papel importante. O pai precisa ser chamado, acolhido e orientado”, sintetiza Chencinski. O pediatra lembra que hoje a mulher trabalha e em muitos casos até garante o sustento da família. “Muito comum ouvir de mulheres que ‘ele não sabe nem trocar a fralda’. Mas também, alguém dedicou um tempo para lhe ensinar? E como o pai irá fazer mais, com tão pouco tempo junto ao filho?”, questiona. Justamente por isso que as discussões agora se voltam à ampliação da licença-paternidade.

Moises Chencinski explica que tem observado pelo menos um pouco mais de discussão em torno do pré-natal paterno – “o pai precisa ter uma folga mensal para poder acompanhar a gestante” – , e da licença-paternidade, hoje de 5 dias – que ele classifica como “um crime”. E vê nisso movimentos que poderão determinar sua ampliação. “Mais cedo ou mais tarde, basta ver como tudo começou”, sugere. O embrião do que é hoje a licença-paternidade vem de 1943, menos para trazer algum benefício ao pai do que para resguardar a empresa: um artigo da CLT concedia falta justificada de um dia ao trabalhador no decorrer da primeira semana do nascimento de um filho. Em 1988, o “benefício” de cinco dias passou a constar na Constituição Federal.

Porém, diferente da licença-maternidade, que é um benefício previdenciário, a do pai é um direito trabalhista e não estaria cargo da Previdência Social e sim como ônus do empregador. Isso porque o pensamento da época entendia que a função desempenhada pelo homem nesse período era a de mero ajudante da mãe e ela era a verdadeira responsável pela criação dos filhos. A licença seria para ele prestar apoio à mãe na recuperação do parto e não para ajudar no cuidado à criança.

De lá para cá, muitas foram as discussões para o aumento do benefício concedido aos homens. Leis e artigos se sucederam para alterar a redação inicial, mas nada determinando que o benefício do homem fosse pago nos termos da licença-maternidade, ou seja, bancado pelo INSS. Isso dificulta a aprovação de qualquer iniciativa para que a licença-paternidade seja estendida.

No dia 8 de março do ano passado, no Dia da Mulher, a então presidente da República, Dilma Rousseff, sancionou a lei que aumenta dos atuais 120, para 180 dias o tempo da licença-maternidade e cria o programa Empresa Cidadã. Ao aderir, o estabelecimento aumenta o benefício aos pais, de 5 para 20 dias. Mas isso ainda é só uma boa notícia. “Apenas 12% das 160 mil empresas do país aderiram ao programa até o final do ano passado”, lamenta Chencinski, resumindo que a licença-paternidade de 20 dias é uma raridade no país. “A Confederação Nacional das Indústrias (CNI) é contra a ampliação, argumentando que diminui a produtividade”, destaca. O programa Empresa Cidadã prevê dedução de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica sobre os salários pagos na licença estendida. Porém, para que o pai obtenha o benefício, deve comprovar a participação no pré-natal, em atividades educativas durante a gestação ou visita à maternidade. “Esse pequeno tempo que o pai tem para ficar com o filho recém-nascido acaba legitimando a desigualdade do papel de homem e mulher na família e mais ainda dentro da empresa. Nela, aliás, também há a questão de o homem não exercer seu direito com medo de ser tachado de pouco comprometido com o trabalho”, destaca o pediatra.

“Estudos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre a licença-paternidade no mundo mostra que no Brasil o benefício fica em cerca de 9% da média de concessão dos países desenvolvidos, que é de oito semanas”, diz Moises Chencinski, lembrando que só a Holanda e a Grécia, com 2 dias, e a Itália com um, oferecem licenças menores que os cinco dias brasileiros. “O problema é econômico”, resume. Apesar de avaliar que a “sociedade evolui a passos de tartaruga”, o pediatra diz que vê uma luz no fim do túnel. “De quando o papel do homem culturalmente era caçar e proteger a família, chegamos ao de provedor, que se perpetuou há até bem pouco tempo.

Hoje, ele começa a se conscientizar de sua parte no processo, de que há outras possibilidades. Com certeza está melhor que há 10 anos, mas ainda há muito por fazer”, sinaliza. Pré-natal paterno no Rio Grande do Sul: s ideia de que o pré-natal é responsabilidade única da mulher está ficando a cada dia mais ultrapassada, mais ainda com a implementação do pré-natal do parceiro, que já é uma realidade. Iniciativa do Ministério da Saúde, profissionais das 18 Coordenadorias Regionais de Saúde (CRS) do Rio Grande do Sul estão recebendo capacitação para o atendimento ao pai nas Unidades Básicas de Saúde dos municípios. “A ideia é transformar as construções sociais de gênero que atribuem os cuidados da criança unicamente à mulher, o que termina por afastar os homens não só dos compromissos e deveres mas também dos prazeres e aprendizados deste universo”, resume o coordenador Estadual da Saúde do Homem, Carlos Antônio da Silva, 63 anos.

O Guia do Pré-Natal do Parceiro para Profissionais de Saúde, cujo projeto-piloto foi lançado nesta sexta-feira em Alvorada, na Região Metropolitana de Porto Alegre, pretende ser uma ‘porta de entrada’ aos serviços da Atenção Básica em Saúde para o homem. “Normalmente eles procuram atendimento quando a situação já é grave”, explica o coordenador, destacando que “a ferramenta busca estimular o parceiro a cuidar-se e mostrar o quanto ele é imprescindível tanto para a mãe quanto para o bebê”. O coordenador sabe que mudanças culturais como esta levam um tempo para seu “pertencimento”. “Nosso objetivo é que os homens sejam especialistas no cuidado e no cuidar-se, da família e de si”, completa Carlos Antônio da Silva.

Cultura e pertencimento

Nossa cultura está abrindo espaço para que os homens possam ser pais e não apenas provedores”, analisa Kátia Wagner Radke, psicanalista da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA). Segundo ela, há um movimento para legitimar a função do homem como pai. “Culturalmente não era da função paterna que ele tivesse envolvimento como cuidador. O pai não poderia nem expressar esse desejo”, observa.

Porém, pontua que nos nossos dias, os meninos já estão mais autorizados a brincar de cuidar. “Isso permitirá às crianças, no futuro, serem pais cuidadores”. De acordo com a psicanalista, “há um novo perfil familiar de um homem mais participativo na vida emocional e educativa dos filhos, com envolvimento afetivo maior e com função de suporte à mulher enquanto mãe”. Kátia explica que, ao ser amparada, essa mãe fica mais disponível para o bebê porque tem retaguarda. “Isso é muito importante na relação mãe-bebê”. E completa: “O contato, o olhar, o toque, a voz, tanto da mãe como do pai, são essenciais para o desenvolvimento emocional da criança.

Sobre o movimento cultural que vem legitimando a função do homem como pai, Kátia remete a uma questão dialética, destacando que a cultura é feita pelo homem e não há como saber o que vem primeiro. “Ao mesmo tempo em que somos os agentes protagonistas da cultura, a cultura tem uma forte influência sobre o indivíduo”, explica. “A lei, a cultura vão acolhendo as necessidades do homem. Assim é que começam as mudanças".

Dr. Moises Chencinski - CRM-SP 36.349 - PEDIATRIA - RQE Nº 37546 / HOMEOPATIA - RQE Nº 37545